Palestrantes abordam uso da cannabis da ancestralidade à atualidade

Abertura do Congresso Brasileiro da Cannabis Medicinal traz panorama que vai desde a história do sistema endocanabinoide às perspectivas nos tratamentos neurológicos

Publicada em 04/05/2022

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Por Ana Carolina Andrade

O primeiro dia do Congresso Brasileiro da Cannabis Medicinal começou com palestras sobre a história do sistema endocanabinoide, os cuidados necessários nas interações medicamentosas e vias de administração e os desafios nos tratamentos neurológicos com canabinoides. Dois dias serão dedicados a discussões sobre saúde, e dois a negócios e legislação.

O pesquisador Renato Filev, que é Coordenador Científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e Diretor Executivo da CANAPSE, e participa de iniciativas dentro e fora da academia, abriu as discussões com uma palestra sobre “A história do Sistema Endocanabinóide e sua farmacologia”. Filev fez uma recuperação histórica dos primeiros registros de utilização de cannabis pela humanidade. Há evidências de registros arqueológicos de domesticação da planta que remontam a cerca de 12 mil anos, e de utilizações terapêuticas na China, em 2.700 AC pelo imperador Shen Nung, assim como por diversos povos como os Citas, Assírios, Indus, que já manejavam a cannabis. Além disso, o pesquisador lembrou que grandes laboratórios farmacêuticos utilizavam a cannabis em outros momentos da história.

Renato Filev, Coordenador Científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e Diretor Executivo da CANAPSE

Ao longo dos anos, o interesse na cannabis como ferramenta terapêutica se perdeu, em um processo historicamente construído. De acordo com Filev, isso se deu por conta da atuação de uma corrente filosófica de alguns médicos, no início do século XIX. “Havia uma corrente eugenista dentro desse grupo de médicos que advogava pela retirada da maconha de circulação, pela criminalização da cannabis”, ele relata. O pesquisador ainda complementou dizendo que esse movimento ocorreu na América, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e esteve muito vinculado a uma criminalização étnica e racial, pois o uso da maconha era sobretudo uma prática da cultura negra e escravizada.

Os interesses sobre a cannabis voltaram a outro patamar quando o pesquisador Raphael Mechoulam conseguiu em 1963, através do haxixe, isolar o canabidiol, e posteriormente o THC, o que intensificou o número de pesquisas na área.

Após esta recuperação histórica, Filev fez uma explicação sobre as principais questões que envolvem o sistema endocanabinoide, e quais e como são impactadas as estruturas orgânicas humanas, como cérebro, fígado, tecido muscular, sistema cardiorrespiratório, pele e sistema reprodutivo.

Cuidado com pacientes precisa ser individualizado

A continuidade dos debates se deu com a farmacêutica Renata Monteiro, que teve seu primeiro contato com a temática da cannabis na universidade, e trouxe em sua palestra uma ampla abordagem dos cuidados necessários nas interações medicamentosas e vias de administração. Renata é pós-graduada em Cannabis Medicinal, Homeopatia, Cosmetologia e Gestão em Indústria Farmacêutica.  Ela iniciou sua palestra explicando que hoje a extração das propriedades da cannabis acontece a partir das infrutescências partenocarpias, que é onde há uma maior concentração de princípios ativos. A utilização se dá através do extrato mole, na forma diluída, uma forma mais assertiva do que a que se costumava utilizar, popularmente conhecida como “grãos de arroz”.

Renata Monteiro, pós-graduada em Cannabis Medicinal, Homeopatia, Cosmetologia e Gestão em Indústria Farmacêutica

Há inúmeras vias de administração e ela ressaltou que a utilização de cada uma pode impactar na intensidade e duração da aplicação, e que todas tem suas particularidades.  A mais utilizada é a via oral, em que o produto ainda passará pelo processo de metabolização do organismo, e se apresentará mais ação dos metabólicos do que dos canabinoides ativos.

Existem ainda diversas outras como a tintura, pouco utilizada no Brasil, a sublingual, que é mais rápida, e evita ou reduz o metabolismo de primeira passagem - não passa pelo sistema digestivo, pelo fígado- e a bucal, que é interessante, porém deve ser utilizada com atenção pois dependendo da interação pode causar feridas na boca.

Um outro ponto destacado pela farmacêutica é a necessidade da atenção dedicada a cada paciente, dando o exemplo da utilização da cannabis em pessoas obesas, já que canabinoides se acumulam nos lipídios, e por isso pessoas mais obesas acumulariam mais canabinoides nos organismos, precisando de maior controle na regulação da dosagem.

Ainda que muito estigmatizada, Renata afirma que a via in natura tem grande absorção, que a grande questão é a sua procedência, e depende da legislação dos países em que é consumida. Com o vaporizador, por exemplo, se permite adequar a temperatura e se dosar o quanto o paciente precisa, e nos EUA, por exemplo, em alguns hospitais é fornecido.

Outras vias como a intravenosa, o spray nasal, a via retal, vaginal e a solução otológica também foram abordadas. Se destacou a questão da via ocular principalmente para o tratamento de glaucoma.

A atenção as vias e a dosagem adequada foram muito enfatizadas por Renata. “É importante sabermos que tipo de produto estamos utilizando, pois a cannabis é uma terapia personalizada, que nós temos que ter muito cuidado. Além dela ser riquíssima em compostos, nós temos ainda o sistema endocanabinoide e cada indivíduo irá responder de forma diferente a dose terapêutica”, disse.

Neurologia e canabinoides tem perspectivas promissoras

A última apresentação deste bloco foi do neurologista Dr. Luís Otávio Caboclo, coordenador médico do Setor de Neurofisiologia Clínica do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Caboclo retomou alguns dos pontos abordados por Filev, ressaltando que ao falarmos sobre cannabis não falamos de algo que é novo, sua utilização é muito antiga.

Sua abordagem se concentrou nos “Desafios nos tratamentos neurológicos com canabinoides”, explicando que atualmente, as comprovações científicas conclusivas se dão quanto a esclerose múltipla e a epilepsia. Em outras áreas, que Caboclo aborda na palestra, ele explica que há diversas condições em que fitocanabinoides são utilizados, com níveis de evidências que variam muito e que existem estudos em diferentes fases. Este reconhecimento, segundo ele, é muito importante, inclusive para o financiamento de estudos e pesquisas na área.

 A epilepsia, doença em que o tratamento com cannabis é mais utilizado, afeta mais de 2 milhões de brasileiros e 60 milhões de pessoas no mundo.  Ela ocorre com mais frequência em países em desenvolvimento, e em 1/3 dos pacientes não se consegue controlar as crises com as drogas convencionais, por isso o tratamento com a cannabis se torna uma alternativa importante.

Dr. Luís Otávio Caboclo, coordenador médico do Setor de Neurofisiologia Clínica do Hospital Israelita Albert Einstein

Em outros casos, como gliomas e epilepsia, Caboclo explica que os estudos envolvendo THC e canabidiol são promissores. Em relação ao uso de canabinoides e a doença de Alzheimer, aponta que há avanços positivos em relação ao tratamento sintomático, mas ainda se precisa elucidar a questão da neuroproteção e a redução na formação de placas amiloide. E já no que se refere aos canabinoides e a doença de Parkinson, apresenta que os resultados dos estudos foram bastante variados. Houve melhora significativa nos indicativos de qualidade de vida, mas sem diferença nos sintomas motores.

O neurologista conclui que quanto aos canabinoides e a neurologia, no que se refere há tumores e doenças degenerativas, as perspectivas são promissoras. “Alguns desafios que são os desafios dos pesquisadores, assim como são os dos neurologistas: nós precisamos entender melhor os mecanismos de ação, definir qual é a melhor composição – CBD, THC, talvez outros canabinoides – definir a melhor posologia para condição. E claro, quando falamos do uso médico, precisamos muito de estudos controlados, que irão regular a prática clínica química, permitir o uso apropriado, permitir uma autorização pelas agências regulatórias e financiamento para que os pacientes possam ter acesso”, afirmou.