Entre farmácias, clubes e zonas cinzentas: o que a Europa revela sobre a cannabis a partir do olhar de uma pesquisadora brasileira

Uma pesquisa financiada pela FAPESP revela as contradições, avanços e zonas cinzentas da cannabis na Europa, a partir da observação direta em mais de dez países

Publicada em 27/12/2025

A pesquisadora Eliana Rodrigues observa que parte dos produtos de cannabis disponíveis nas farmácias alemãs é vendida sem necessidade de receita médica

A pesquisadora Eliana Rodrigues observa que parte dos produtos de cannabis disponíveis nas farmácias alemãs é vendida sem necessidade de receita médica | crédito: Eliana Rodrigues

A cannabis ocupa hoje um lugar paradoxal na Europa. Em alguns países, é tratada como medicamento de alta qualidade, vendido em farmácias com rótulo, nota fiscal e controle estatal. Em outros, circula em vitrines improvisadas, embalagens disfarçadas ou sob categorias que tentam contornar a lei. Há ainda locais onde o consumo não é legalizado, mas o cultivo doméstico é permitido, criando zonas cinzentas que desafiam qualquer leitura simplista.


 

Esse mosaico de contradições foi observado de perto pela pesquisadora Eliana Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), durante uma extensa temporada de pesquisa por países europeus. A viagem integra um projeto científico financiado pela FAPESP, em colaboração com o Instituto de Botânica de Barcelona, e conecta história, ciência, política pública e cultura.


 

“O objetivo é entender como os europeus se relacionam com a planta, do ponto de vista medicinal e não medicinal”, explica a pesquisadora. “Em quais tipos de lojas se pode encontrar a planta? Quais produtos podem ser comercializados? Se ela pode ser cultivada? E quais são as facilidades e dificuldades de acesso em cada país.”


 


 

Uma pesquisa que conecta Europa e Brasil


 


 

Embora a observação contemporânea da cannabis seja um dos eixos centrais, o projeto de Eliana tem raízes históricas profundas. A pesquisadora está reunindo dados para alimentar o CANNUSE, um banco de dados etnobotânicos europeu, com informações sobre o Brasil.


 

“Estou buscando em acervos aqui as obras dos naturalistas europeus que foram ao Brasil entre os séculos XVI e XIX”, relata. O objetivo é identificar registros da relação entre a cannabis, os povos indígenas e os africanos escravizados naquele período.


 

Esse esforço histórico explica por que a pesquisadora ressalta que sua principal dedicação não é a produção de conteúdo digital. “Na verdade, estou aproveitando a pesquisa da FAPESP para alimentar o canal”, afirma. O centro do trabalho segue sendo a pesquisa científica.


 


 

Um continente, múltiplas realidades regulatórias


 

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Jardim Botânico de Berlim. | Crédito da foto: Eliana Rodrigues, pesquisadora nas áreas de Etnobotânica e Etnofarmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

 


 

Desde agosto de 2025, Eliana passou por Espanha, Portugal, Itália, Áustria, Alemanha, França, Bélgica, Holanda e República Tcheca, com passagens por cidades como Barcelona, Madri, Lisboa, Berlim, Praga, Amsterdã, Paris e Bruxelas. O que encontrou foi um continente fragmentado em suas políticas e práticas.


 

Na Alemanha, o uso medicinal se destaca pela formalidade institucional. “Você vai retirar nas farmácias as suas flores, em um pote com rótulo, nota fiscal e uma bolsinha, como qualquer outro medicamento”, descreve. Segundo ela, a qualidade dos produtos é “realmente invejável”, com cultivo orgânico, certificação governamental e altos teores de THC quando o médico reconhece a necessidade do paciente.


 

Esse cenário contrasta fortemente com a França, onde o uso medicinal não é permitido. “Médicos não podem prescrever”, afirma. Ainda assim, lojas especializadas comercializam produtos importados. “Com que qualidade?”, questiona, apontando um vazio regulatório que expõe consumidores a riscos.


 


 

República Tcheca: quando a prática antecede a lei


 


 

Um dos casos mais emblemáticos observados pela pesquisadora foi o da República Tcheca, especialmente em Praga. Diferentemente do que a aparência do mercado pode sugerir, o uso não medicinal da cannabis ainda não é legalizado no país.


 

No entanto, a legislação permite que cidadãos cultivem em casa até três plantas de cannabis, o que cria uma ambiguidade prática. Nesse contexto, Eliana se deparou com uma oferta ampla e visível de produtos relacionados à planta.


 

Apesar do comércio observado, o uso não medicinal segue oficialmente proibido, evidenciando um descompasso entre a legislação e a realidade cotidiana. O caso tcheco revela como, em alguns países, a tolerância social e a prática comercial avançam antes que o Estado assuma formalmente uma regulamentação clara.


 


 

CBD, farmácias e propaganda enganosa


 


 

Em Bruxelas, a pesquisadora encontrou óleos ricos em CBD vendidos em farmácias sem necessidade de receita médica. Já em outras cidades, o acesso depende de manipulação farmacêutica mediante prescrição.


 

No entanto, nem sempre o consumidor encontra o que imagina estar comprando. Eliana relata um episódio emblemático em Lisboa, ao adquirir um xampu. “Eu me senti enganada”, afirma. Segundo ela, o produto era feito apenas à base de sementes, apesar de utilizar imagens da planta.


 

“A gente sabe que é o CBD que fortalece o folículo capilar, e nas sementes temos pouquíssimo CBD”, explica. Para a pesquisadora, trata-se de um padrão recorrente: “Pega-se muita carona com a foto da planta”, criando uma falsa percepção de presença de canabinoides ativos.


 


 

Um mercado vasto — mesmo quando invisível para a lei


 


 

Ao longo da viagem, Eliana encontrou uma ampla diversidade de estabelecimentos relacionados à cannabis:


 

  • Lojas de CBD e cannabis, com flores, óleos, haxixe, sementes, cosméticos, alimentos e produtos para pets

  • Coffee shops, especialmente em Amsterdã e Praga

  • Clubes canábicos, comuns em Barcelona, Berlim e Salamanca

  • Tabacarias, vendendo flores de variedades agronômicas com até 0,3% de THC

  • Lojas de psilocibina e derivados de LSD, que também comercializam canabinoides

  • Lojas de souvenir, com balas, chocolates, óleos e cookies


 


 

Em muitos casos, os produtos são vendidos sob categorias alternativas para contornar restrições legais. Em Portugal, por exemplo, o haxixe aparece como “objeto de colecionador”. “O vendedor não pode indicar ao cliente como produto a ser fumado”, relata.


 


 

Sintéticos liberados, planta estigmatizada


 


 

Um dos pontos que mais preocupam a pesquisadora é a liberação de canabinoides sintéticos na Europa. “É legal vender o THC sintético, o HHC”, afirma. Para ela, isso representa um grave problema. “A meu ver, é o pior dos cenários.”


 

O paradoxo é evidente: enquanto a planta natural enfrenta restrições, compostos artificiais circulam com maior permissividade, muitas vezes com menos debate público e menor rigor científico.


 


 

Cultura: descriminalizar não significa aceitar

 

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Em Amsterdã, fumar nas ruas é proibido. | Crédito da foto: Eliana Rodrigues, pesquisadora nas áreas de Etnobotânica e Etnofarmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
 

 


 

A viagem também revelou que mudanças legais não garantem aceitação social. Em Portugal, apesar da descriminalização do uso não medicinal, Eliana observa resistência cultural. “Não se observa na cultura do povo a aprovação da planta.”


 

Na Holanda, país historicamente associado à cannabis, a percepção também não é homogênea. “Apesar dos coffee shops, não parece que a população é muito positiva quanto ao uso da planta para fins não medicinais”, relata.


 


 

A ausência da cannabis nos jardins botânicos


 


 

Talvez a constatação mais simbólica da pesquisa seja o apagamento da cannabis em espaços de educação científica. Eliana visitou 12 jardins botânicos europeus e não encontrou a planta em nenhum deles.


 

“Os jardins botânicos servem para fornecer educação sobre as plantas”, argumenta. “A cannabis poderia estar entre as plantas medicinais, fibrosas e remediadoras de solo e água.”


 

A única exceção foi Berlim. “Eles disseram que já tiveram um exemplar, mas as pessoas roubavam a planta, então desistiram de colocar”, conta. O episódio revela como o tabu ainda atravessa até mesmo instituições científicas.


 


 

Um espelho para o debate brasileiro


 


 

Ao retornar ao Brasil, Eliana Rodrigues traz mais do que registros de viagem. Seu trabalho expõe como a Europa lida de forma fragmentada e, muitas vezes, contraditória com a cannabis — ora como medicamento legítimo, ora como produto disfarçado, ora como problema cultural.


 

A pesquisa evidencia que regulamentar não é apenas legislar, mas educar, fiscalizar, garantir qualidade e enfrentar estigmas históricos. Uma reflexão que atravessa fronteiras e oferece subsídios concretos para o debate brasileiro sobre ciência, saúde pública e política de drogas.