A Reclassificação da Cannabis nos EUA e o Realinhamento do Mercado Global

A Reclassificação da Cannabis nos EUA e o Realinhamento do Mercado Global

Por que este avanço imperfeito importa para quem está regulando agora

Publicado em 21/12/2025

Em 18 de dezembro de 2025, o Presidente Donald Trump assinou uma ordem
executiva que transfere a cannabis do Schedule I para o Schedule III da Lei de
Substâncias Controladas dos Estados Unidos. Para quem observa esse mercado há
uma década, como eu, a primeira reação não é euforia — é reconhecimento
pragmático de que estamos testemunhando uma reconfiguração estrutural do cenário
regulatório global.

Não se trata de celebrar Trump ou de declarar vitória sobre a proibição. Trata-se de
entender que, quando a maior economia do mundo tira cannabis do mesmo anexo da
heroína e a coloca ao lado da codeína, o sinal geopolítico transcende fronteiras. A
proibição monolítica global, aquela sustentada pela hegemonia da política de drogas
norte-americana desde 1970, perdeu sua base de legitimidade institucional.

O Que Mudou de Fato

A reclassificação não legaliza cannabis para uso recreativo em nível federal. Os
estados continuam operando seus próprios mercados regulados, e a substância
permanece controlada. Mas duas mudanças estruturais alteram permanentemente o
jogo:

Primeiro, o fim da Seção 280E do Código Tributário. Desde 1982, empresas que
trabalham com substâncias do Schedule I ou II não podem deduzir despesas
operacionais padrão, resultando em alíquotas efetivas superiores a 70%. Com a
migração para Schedule III, os operadores passam a ser tributados como qualquer
outra corporação — cerca de 21% federal. Isso não é benefício fiscal. É o oxigênio
financeiro básico para qualquer indústria que pretenda ser sustentável.

Capital liberado significa mais pesquisa, acesso a crédito, estabilização de cadeias de
suprimento e capacidade de M&A estratégico. Beneficia operadores bem geridos de
qualquer tamanho, não apenas grandes players. É a infraestrutura financeira que
faltava.

Segundo, o reconhecimento federal de "uso médico aceito". Isso desmantela o
argumento jurídico que sustentava a proibição absoluta. Quando o Departamento de
Saúde dos EUA confirma utilidade terapêutica e a DEA executa a reclassificação, a
narrativa da "droga sem valor médico" colapsa. E esse colapso narrativo reverbera
globalmente.

O Efeito Dominó que Importa para a América Latina

A América Latina construiu suas políticas de drogas sob a sombra — e
frequentemente sob coerção direta — da posição norte-americana. Países que
tentaram liberalizar enfrentaram ameaças de descertificação, sanções comerciais e
pressão diplomática. O Uruguai desafiou isso em 2013. A Colômbia vem tentando há
anos. México enfrenta paralisia legislativa em parte por receio de Washington.

Agora, esse receio perdeu fundamento prático. Se os EUA admitem uso médico e
facilitam pesquisa, como justificar represálias contra países que fazem o mesmo — ou
vão além?

Colômbia, México, Uruguai e outros produtores de baixo custo ganham espaço
político para expandir exportações médicas sem medo de retaliação. O argumento do
presidente colombiano Gustavo Petro de que os EUA deveriam "legalizar para
combater o tráfico" ganha tração quando Washington admite que a proibição absoluta
não se sustenta cientificamente.

Para o Brasil, isso valida o modelo regulatório que estamos construindo via Anvisa e
MAPA — um modelo médico-primeiro, com ênfase em pesquisa e conformidade de
qualidade. Não precisamos replicar os erros regulatórios dos EUA. Podemos observar,
aprender e construir algo mais coerente.

Lições do Colapso do Hemp Americano

Aqui entra uma lição crítica que frequentemente analiso: distinções regulatórias
arbitrárias destroem mercados.

Os EUA criaram, em 2018 via Farm Bill, um mercado de "hemp" baseado em uma linha
imaginária de 0.3% de THC. A ideia era separar cannabis "boa" (industrial, não
psicoativa) da cannabis "má" (recreativa, controlada). O resultado? Um mercado que
explodiu desordenadamente, inundou-se de produtos não regulados, colapsou preços,
quebrou produtores e gerou desconfiança massiva do consumidor.

Essa distinção artificial entre "hemp" e "cannabis" nunca fez sentido botânico,
farmacológico ou comercial. É a mesma planta. O que deveria importar é finalidade de
uso e padrões de qualidade, não teor arbitrário de um canabinoide.

O Brasil tem a oportunidade de não cometer esse erro. Podemos regular a cannabis
como planta única, com diferentes vias regulatórias baseadas em aplicação: médica,
industrial, eventual uso adulto no futuro. Cada via com seus padrões de GMP,
rastreabilidade e controle, mas sem criar mercados paralelos que se canibalizam por
arbitrariedade regulatória.

O Alerta Operacional que os EUA Enfrentarão

Vale um alerta operacional que fortalece ainda mais o caso brasileiro: a estrutura da
FDA e da DEA não foi desenhada para absorver cannabis como planta in natura. A FDA
regula tradicionalmente "uma molécula, um efeito" — a cannabis quebra isso com
dezenas de canabinóides interagindo em efeito entourage. Isso cria risco real de
paralisia logística: sob Schedule III, dispensação legal ocorre tecnicamente em
farmácias registradas pela DEA (CVS, Walgreens), não em dispensários atuais que
operam sob licenças estaduais. Produtos sem aprovação formal de NDA (New Drug
Application) permanecem em zona cinzenta legal mesmo após a reclassificação.

Essa fricção operacional pode atrasar a abertura efetiva do mercado americano por
anos, criando um período de ajuste caótico onde a lei mudou mas a infraestrutura de
conformidade ainda não existe. Para o Brasil, isso reforça duas vantagens estruturais:
já operamos distribuição médica via farmácias (modelo Anvisa consolidado) e
podemos desenhar categorias regulatórias próprias sem forçar a planta em gavetas
farmacêuticas rígidas herdadas de frameworks do século XX.

Não se trata de copiar os EUA — trata-se de evitar os erros estruturais que eles estão
prestes a cometer enquanto tentam encaixar uma realidade botânica complexa em
regulações desenhadas para moléculas sintéticas isoladas.

Sobre o Medo da "Farmaceuticalização"

Existe uma narrativa apocalíptica circulando: "Schedule III significa que Big Pharma vai
devorar o mercado artesanal". Essa visão ignora a complexidade e histórico de
mercados regulados.

Múltiplos nichos podem — e vão — coexistir:

● Farmacêutico: produtos padronizados, aprovados pelo FDA, reembolsáveis por
seguros. Para condições graves, pacientes que precisam de consistência e
cobertura.

● Wellness/Nutracêutico: CBD e formulações de baixo THC, regulados como
suplementos com supervisão crescente (o programa piloto do Medicare para
CBD aponta nessa direção).

● Uso adulto estadual: continuará existindo nos EUA, mas sob pressão crescente
para adotar padrões de qualidade farmacêutica.

● Agrícola/Industrial: fibras, sementes, biomassa — mercados não-psicoativos
que se beneficiam da desestigmatização.

A questão estratégica não é "quem vence?", mas "como operadores em cada nicho se
posicionam para capturar valor sem depender de arbitragem regulatória?"

Padrões de qualidade não são inimigos da diversidade. Eles eliminam operadores que
não têm compromisso com segurança do consumidor — o que é necessário para
qualquer mercado maduro. Pequenos produtores que investem em conformidade
sobrevivem. Aqueles que dependem de zonas cinzentas regulatórias, não.

Tensão com Tratados Internacionais: Risco ou
Oportunidade?

A reclassificação cria tensão técnica com a Convenção Única sobre Entorpecentes da
ONU de 1961, que classifica a cannabis no Anexo I internacional (a categoria mais
restritiva). Os EUA tentam argumentar que, mantendo controles federais (prescrições,
registro na DEA), permanecem em conformidade técnica, mesmo que estados
individuais violem o espírito do tratado.

Isso não é hipocrisia. É diplomacia regulatória pragmática — o mesmo que Canadá e
Uruguai fizeram ao legalizar enquanto permaneciam signatários da convenção. Países
soberanos reinterpretam tratados à luz de novas evidências científicas e prioridades
de saúde pública. Isso constrói legitimidade jurídica de longo prazo, não a corrói.

Para países em desenvolvimento como o Brasil, essa abordagem é modelo. Podemos
avançar regulações baseadas em ciência e interesse nacional, respeitando
governança internacional mas sem sermos reféns de interpretações congeladas de
tratados da década de 1960.

O Que Vem a Seguir: 18 Meses Decisivos

Os próximos 18 meses definirão quem captura valor neste novo cenário. Alguns
movimentos já estão em curso:

● Consolidação do mercado norte-americano: operadores que sobreviveram à
280E agora terão capital para M&A agressivo. Espere uma onda de fusões.

● Entrada de capital institucional: fundos que evitavam o setor por compliance
vão se reposicionar. Não indiscriminadamente, mas para operadores com
governança sólida.

● Aceleração regulatória na Europa e Latam: Alemanha, Colômbia, México verão
pressão interna para não ficarem atrás dos EUA em inovação médica e captura
de mercado.

● Pressão sobre padrões globais: exportadores que não atingirem GMP
farmacêutico serão excluídos de mercados premium. A competição não será
por preço, mas por conformidade.

Para o Brasil, especificamente, a janela estratégica é agora. As decisões regulatórias
de 2026 — especialmente via MAPA e Anvisa — determinarão se seremos produtores
competitivos de classe mundial ou fornecedores de commodities de baixa margem.

Conclusão: Avanços Imperfeitos Constroem Mercados
Sustentáveis

Não preciso gostar de Trump para reconhecer que este ato administrativo altera
permanentemente o campo de jogo. A proibição global monolítica terminou. O que
começa agora é uma era de regulação fragmentada, onde a vantagem competitiva
pertence a quem navega complexidade institucional com excelência técnica.

Isso não é motivo para euforia, mas para trabalho estratégico sério. Cada pequeno
avanço regulatório redefine o possível. Décadas de evidência clínica, pressão
econômica e coragem política de ativistas e empreendedores tornaram insustentável a
posição anterior.

O impossível de 2015 é o convencional de 2025. E o que construirmos
regulatoriamente nos próximos anos determinará se a cannabis se torna um mercado
global sustentável ou replica os erros de indústrias capturadas por arbitragem e má
governança.

A escolha é nossa. O momento é agora.

 

 Biografia do Autor Marcelo de Vita Grecco
Marcelo de Vita Grecco

Marcelo De Vita Grecco é consultor, mentor, advisor e cofundador da The Green Hub.