Benchmark da cannabis às avessas para o Brasil

Em mais uma coluna para o Sechat, Marcelo De Vita Grecco traça um panorama da situação da regulamentação da Cannabis medicinal e do cânhamo no Brasil em relação a outros países que estão mais avançados nesse sentido, principalmente por conta dos pass

Publicada em 29/04/2021

capa
Compartilhe:

Coluna de Marcelo De Vita Grecco*

Quando tenho oportunidade de abordar o cenário de mercado da indústria legal da cannabis, sempre enfatizo a existência de uma corrida global para explorar todo o potencial desse setor. Depois de décadas de preconceito à planta, as possibilidades no uso medicinal e, consequentemente, as vozes da ciência, começaram a tirar a cannabis de um período de obscuridade. Hoje, ainda existe nebulosidade, mas há avanços notáveis em estudos e pesquisas, mais clareza dos fatos e, especialmente, maiores horizontes das múltiplas formas de utilização das espécies da cannabis, com destaque para o cânhamo. Nessa corrida, o Brasil está largando atrás. Obviamente, isso não é bom, mas, já que está acontecendo, que tal transformar o limão em limonada, explorando um benchmark às avessas?

O Brasil precisa conhecer o caminho das pedras trilhado por outros países para evitar passar pelos mesmos equívocos na formação do ecossistema da cadeia produtiva em torno da cannabis

No mundo dos negócios, o benchmark é normalmente ligado à comparação e identificação de melhores práticas para melhoria constante de processos e operações. Desta forma, o Brasil precisa conhecer o caminho das pedras trilhado por outros países para evitar passar pelos mesmos equívocos na formação do ecossistema da cadeia produtiva em torno da cannabis. Nesse sentido, já há uma série de aprendizados que deve estar no radar de qualquer empreendedor ou profissional a fim de atuar nesse mercado.

Não há dúvida de que o maior desafio é relacionado às regulamentações conduzidas pelo poder público. São elas que moldarão as possibilidades de desenvolvimento de negócios e o timing desse processo. Penso que um dos maiores equívocos nesse movimento é a tentativa de regulamentar, sem o estabelecimento de uma necessária infraestrutura legal. Isso traz entraves a diversos pontos da cadeia. Este problema origina, só para citar um forte exemplo, dificuldades no acesso a medicamentos à base de cannabis.

Poucos marcos federais foram aprovados em todo o mundo. No caso dos Estados Unidos, existem também as legislações estaduais. Já no continente europeu, há definições do bloco, mas cada país permanece com autonomia para regulamentar. Esse conjunto cria uma verdadeira “Torre de Babel”. 

Obviamente, sabemos que Estados Unidos e Europa exercem maior influência e suas decisões exercem um efeito dominó, com replicação em outros países. Porém, isso leva tempo e, enquanto não acontece, os investidores interessados nesse mercado ficam receosos por conta de incertezas ou pela sensação de caminharem em um território minado.

Não deveríamos ter pessoas totalmente alheias ao setor e à ciência criando regulamentação, especialmente porque faltam experiências anteriores

O campo regulatório é comandado pelos governantes, mas há pontos importantes a serem considerados nessa equação. Antes de tudo, não deveríamos ter pessoas totalmente alheias ao setor e à ciência criando regulamentação, especialmente porque faltam experiências anteriores. Isso aconteceu no Equador, gerando insatisfação da cadeia ligada ao cultivo, sem falar no desenvolvimento de operações industriais, que ficou à margem em vários pontos estruturais.

Assim, é fundamental o envolvimento de pessoas que entendam o potencial de todas as dimensões da cannabis, que vão muito além do canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC). Se considerarmos o desejo pelo mundo ideal, seria fundamental, até mesmo, separar a regulamentação da cannabis e a de cânhamo, constituindo marcos específicos para cada espécie da planta. Ainda nesse caminho, seria de extrema relevância constituir urgentemente uma comissão internacional do cânhamo. A experiência do Uruguai, que regulamentou as duas espécies de forma misturada deixou alguns entraves significativos, embora tenha dado certo e seja considerado um ícone de virada de chave.

O governo precisa também estabelecer taxas e tributações justas, de forma a não criar barreiras ou inviabilizar pesquisas e desenvolvimento de negócios. Recentemente, a carga elevada de impostos e do trâmite para obter autorizações causou perdas nos mercados dos Estados Unidos e do Canadá, especialmente no que tange o uso adulto da cannabis. Em alguns casos, a configuração favoreceu os mercados ilícitos, o que é um tiro no pé inadmissível.

As experiências já conhecidas mostram o quanto é importante envolver o mercado nesse processo, pois qualquer legislação que não seja minimamente sensível às necessidades da cadeia produtiva terá grandes falhas, engessando e inviabilizando a concretização de projetos. Sem isso, até o acesso ao sistema financeiro e de comércio exterior ficam comprometidos, impactando negativamente todo o ecossistema.

Ao governo cabe também o papel de criação de ambiente favorável, por meio de incentivos, tanto no aspecto financeiro quanto no educacional, incluindo pesquisas e permitindo a qualificação de mão-de-obra.

Com o bom endereçamento desses fatores básicos, a cadeia produtiva consegue se desenvolver em sua totalidade, com os recursos de investidores que apostam em tecnologia e inovação, aproximando grandes empresas de startups, em um conceito de open innovation. Esse movimento feito de forma bem estruturada pode favorecer muito a conexão primordial entre produtores rurais, indústria e varejo, criando marcas fortes e com alto valor agregado em seus produtos e serviços.

Além de apontar o caminho das pedras, sinalizo um caminho que pode ser muito prolífico em relação aos marcos regulatórios no Brasil. Que tal inverter a ordem corrente? Ou seja, ao invés de pensar primeiro no regulamento se considerar o setor de atividade e mercado, por segmentação. Desta maneira, os esforços não seriam todos concentrados em um grande arcabouço legislatório central, mas sim em pontos específicos de acordo com cada órgão competente.

Teríamos, por exemplo, fármacos, alimentos, bebidas e cosméticos analisados e autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Já o biocombustível a partir do cânhamo seria da alçada da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Questões envolvendo melhoria genética de sementes e fibra de cânhamo estaria no escopo do Ministério da Agricultura e assim por diante. Basta observar a regulamentação nos Estados Unidos e na Europa e copiar o que mais funciona.

E para não dizerem que não falei das flores, observem o marco regulatório estabelecido no estado norte-americano do Colorado. Trata-se, possivelmente, da melhor legislação do mundo para a cannabis. Resumidamente, pode se dizer que os legisladores foram muito bem sucedidos em identificar os problemas e atuar com foco em soluções, além de conduzirem de forma bastante eficaz tanto a estruturação, quanto a implementação da regulamentação.

A indústria legal da cannabis está ativa e com transformações ocorrendo dia a dia. Há ampla variedade de lançamentos, novas tendências surgindo e inovação pulsando fortemente, além de empreendimentos novos e empresas tradicionais se conectando para ascender nesse novo mercado.

Lidar bem com o desafio de estabelecer uma regulamentação eficiente e, posteriormente, de mantê-la adaptada às constantes mudanças é vital para que a indústria legal da cannabis desponte e possamos aproveitar todas as chances que ela tem a oferecer ao Brasil.

Lidar bem com o desafio de estabelecer uma regulamentação eficiente e, posteriormente, de mantê-la adaptada às constantes mudanças é vital para que a indústria legal da cannabis desponte e possamos aproveitar todas as chances que ela tem a oferecer ao Brasil. É um caminho global sem volta e o potencial é imenso. Só não vale ficar com o limão na mão se dele podemos desfrutar uma limonada saborosa e próspera para o País.

*Marcelo De Vita Grecco é cofundador, head de Negócios da The Green Hub e colunista do Sechat

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Veja outros artigos de nossos colunistas:

Alex Lucena 

– Inovação e empreendedorismo na indústria da Cannabis (19/11/2020)

– Inovar é preciso, mesmo no novo setor da Cannabis (17/12/20)

 Sem colaboração, a inovação não caminha (11/02/2021)

Bruno Pegoraro

– A “legalização silenciosa” da Cannabis medicinal no Brasil (31/03/2021)

Fabricio Pamplona

– Os efeitos do THC no tratamento de dores crônicas (26/01/2021)

 Qual a dosagem ideal de canabidiol? (23/02/2021)

– CBD: batendo na porta da psiquiatria (05/04/2021)

– Está comprovado: terpenos e canabinoides interagem diretamente com mecanismo canabinoide (27/04/2021)

Fernando Paternostro

– As multifacetas que criamos, o legado que deixamos (11/3/2021)

– Vantagem competitiva, seleção natural e dog years (08/04/2021)

Jackeline Barbosa

 Cannabis, essa officinalis (01/03/2021)

Ladislau Porto

– O caminho da cannabis no país (17/02/2021)

– Associações x regulação x Anvisa x cannabis (26/04/2021)

Luciano Ducci

– Vão Legalizar a Maconha? (12/04/2021)

Mara Gabrilli

– A luta pela Cannabis medicinal em tempos de cloroquina (23/04/2021)

Marcelo de Vita Grecco

– Cânhamo é revolução verde para o campo e indústria (29/10/2020)

– Cânhamo pode proporcionar momento histórico para o agronegócio brasileiro (26/11/2020)

– Brasil precisa pensar como um país de ação, mas agir como um país que pensa (10/12/2020)

– Por que o mercado da cannabis faz brilhar os olhos dos investidores? (24/12/2020)

– Construção de um futuro melhor a partir do cânhamo começa agora (07/01/2021)

– Além do uso medicinal, cânhamo é porta de inovação para a indústria de bens de consumo (20/01/2021)

 Cannabis também é uma questão de bem-estar (04/02/2021)

– Que tal CBD para dar um up nos cuidados pessoais e nos negócios? (04/03/2021)

– Arriba, México! Regulamentação da Cannabis tem tudo para transformar o país (18/03/2021)

– O verdadeiro carro eco-friendly (01/04/2021)

– Os caminhos para o mercado da cannabis no Brasil (15/04/2021)

Maria Ribeiro da Luz

– Em busca do novo (23/03/2021)

– A tecnologia do invisível (20/04/2021)

Patrícia Villela Marino

- Nova York, cannabis, racismo e prisão (28/04/2021)

Paulo Jordão

– O papel dos aparelhos portáteis de mensuração de canabinoides (08/12/2020)

– A fórmula mágica dos fertilizantes e a produção de canabinoides (05/01/2021)

– Quanto consumimos de Cannabis no Brasil? (02/02/2021)

 O CannaBioPólen como bioindicador de boas práticas de cultivo (02/03/2021)

– Mercantilismo Português: A Origem da Manga Rosa (06/04/2021)

Pedro Sabaciauskis

– O papel fundamental das associações na regulação da “jabuticannábica” brasileira (03/02/2021)

 Por que a Anvisa quer parar as associações? (03/03/2021)

– Como comer a jabuticannabica brasileira? (13/04/2021)

Ricardo Ferreira

– Da frustração à motivação (03/12/2020)

– Angels to some, demons to others (31/12/2020)

 Efeitos secundários da cannabis: ônus ou bônus? – (28/01/2021)

 Como fazer seu extrato render o máximo, com menor gasto no tratamento (25/02/2021)

– Por que os produtos à base de Cannabis são tão caros? (25/03/2021)

– A Cannabis no controle da dor e outras consequências do câncer (22/04/2021)

Rodolfo Rosato

– O Futuro, a reconexão com o passado e como as novas tecnologias validam o conhecimento ancestral (10/02/2021)

– A Grande mentira e o novo jogador (10/3/2021)

– Mister Mxyzptlk e a Crise das Terras Infinitas (14/04/2021)

Rogério Callegari

– Sob Biden, a nova política para a cannabis nos EUA influenciará o mundo (22/02/2021)

– Nova Iorque prestes a legalizar a indústria da cannabis para uso adulto (17/03/2021)

Stevens Rehen

 Cannabis, criatividade e empreendedorismo (12/03/2021)

Waldir Aparecido Augusti

– Busque conhecer antes de julgar (24/02/2021)

– Ontem, hoje e amanhã: cada coisa a seu tempo (24/03/2021)

Wilson Lessa

– O sistema endocanabinoide e os transtornos de ansiedade (15/12/2020)

– O transtorno do estresse pós-traumático e o sistema endocanabinoide (09/02/2021)

– Sistema Endocanabinoide e Esquizofrenia (09/03/2021)

– O TDAH e o sistema endocanabinoide (16/04/2021)