Associação recebe o primeiro habeas corpus coletivo para cultivo de cannabis para fins medicinais

Agora, além oferecer segurança aos 21 pacientes associados que cultivam cannabis para uso medicinal, a entidade poderá ampliar esse número por meio do acréscimo do plantio. A decisão de primeiro grau é definitiva, mas cabe recurso.

Publicada em 08/02/2021

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Charles Vilela

A Cultive (Associação de Cannabis e Saúde), que tem sede em São Paulo, obteve o primeiro habeas corpus coletivo para o cultivo de cannabis para fins medicinais. A decisão, que ocorreu na sexta-feira (5), é a primeira no Brasil a oferecer salvo-conduto coletivo para o plantio. Agora, além oferecer segurança aos 21 pacientes associados que cultivam cannabis para uso medicinal, a entidade poderá ampliar esse número por meio do acréscimo do plantio. A decisão de primeiro grau é definitiva, mas cabe recurso.

Além do ineditismo da obteção de autorização judicial para o cultivo coletivo de cannabis para fins medicinais, outra inovação da decisão é que a Cultive poderá fornecer mudas para os seus pacientes que tenham receita que poderão realizar o cultivo em casa. "Foi uma ação heróica", considera o advogado Ricardo Nemer, da Rede Reforma. responsável pelo processo. "Tem que todo um histórico, (com relatos de) instituições parceiras, médicos, técnicos. O (tempo) de planejamento (da ação) é muito maior do que a petição em si."

O advogado Ricardo Nemer, responsável pela ação (Foto: Arquivo pessoal)

É crime cuidar da saúde?

Na manifestação no processo, que foi ajuizado no dia 12 de dezembro, portanto menos de dois meses antes da decisão favorável, o Ministério Público alegou que o habeas corpus não seria a via adequada, e sim uma ação civil. "Quando o promotor disse que (o correto) não seria ação criminal, dissemos que o dia que o Estado disser que cuidar da saúde não é mais crime, aí vamos usar uma ação civil", considera Nemer. "Se o Estado diz que certa ação ou omissão de qualquer pessoa é crime, quem pode dizer se é crime ou não (o cultivo de cannabis para uso medicinal) é a Justiça Criminal."

Em sua decisão, a juíza Andrea Barrea, do Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária, do Tribunal de Justiça de São Paulo, considerou que "por meio desta impetração, busca-se a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos à vida e à saúde, os quais devem prevalecer sobre a proibição de se cultivar a planta de onde se extrai a substância utilizada especificamentepara o tratamento dos pacientes, em um contexto de necessidade, adequação e proporcionalidade."

Confira outros trechos da decisão

"De início, em que pesem as manifestações das Autoridades ditas coatoras e do Ministério Público, reputo que a farta documentação juntada aos autos atesta e individualiza a necessidade do ratamento à base de Cannabis a cada um dos seus 21 associados, assim como resta demonstrada a boa-fé da paciente ao fazer uso do presente remédio constitucional para garantia judicial da pretensão e regularização da sua atual situação, em vez de permanecer na clandestinidade.(…) Portanto, diante dos documentos acostados aos autos, entendo que pretensão dos impetrantes é garantir o direito à vida com melhor qualidade possível, possibilitando aos seus associados o acesso a tratamento atual de maior eficácia e indicado pela medicina e garantindo-lhes condições de vida digna com o mínimo existencial para uma vida saudável.(…)

A legislação que garante e regula o direito à saúde deve sempre se manter atenta para acompanhar os avanços da ciência e da medicina, atualizando-se e facilitando que o cidadão possa usufruir, na integralidade, do seu direito à saúde. Outrossim, não se afigura coerente que a lei, cujo bem jurídico tutelado é a saúde pública, impeça a fruição plena deste mesmo direito pelo paciente. Por isso mesmo existe permissão legal para o cultivo da maconha para os fins específicos descritos no parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 11.343/06, ainda que não regulamentada. A inércia estatal em conferir eficácia a tal norma não pode servir de obstáculo à concretização do direito fundamental à saúde e à própria dignidade da pessoa humana. No caso em apreço, a concessão da ordem pretendida nada mais é do que a plena concretização da Justiça.

Sem suspeitas: cultivo é por razões médicas e humanitárias

E não há qualquer tipo de indício, ou suspeita acerca da conduta da paciente, de que o ato de semear, cultivar e dispor da planta (maconha) seja compatível com a conduta do crime de tráfico de entorpecentes. Ao contrário, dos autos extrai-se que o cultivo da planta decorre de razões médicas e humanitárias, conforme se depreende dos relatórios médicos. Outrossim, não se olvida que existem instrumentos legais para que os pacientes recebam auxílio estatal para a obtenção do medicamento à base de Cannabis por meio de determinação judicial à Fazenda Pública. No entanto, é de se considerar que os trâmites burocráticos e a morosidade para o alcance da pretensão justificam o pedido formulado para extração artesanal do óleo necessário, evitando-se ainda eventual interrupção do tratamento em virtude dos entraves para obtenção do medicamento."

Anvisa recorre e Justiça cassa liminar que permitia plantio à Apepi

No dia 13 de novembro, a Justiça cassou a liminar que assegurava à Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), com sede no Rio de Janeiro, o direito de “pesquisar, plantar, colher, cultivar, manipular, transportar, extrair óleo, acondicionar, embalar e distribuir aos associados o extrato de canabidiol, oriundo da Cannabis.”

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) recorreu da liminar que havia sido deferida pela 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro, no dia 15 de julho permitindo à entidade o cultivo. “Apesar da desembargadora Relatora Vera Lucia Lima ter votado a favor de manter a liminar, o desembargador Guilherme Diefenthaeler decidiu revogá-la, e o desembargador Marcelo Pereira da Silva acompanhou seu voto e foi formada a maioria”, disse a entidade em nota.

Segundo a Apepi, a decisão que permitia o cultivo associativo em larga escala foi concedido pela Justiça com uma série de restrições e exigências. “Um Sim histórico que nos colocou numa outra dimensão dentro daquilo que nos propomos a fazer, uma dinâmica que assusta diante os inúmeros desafios”, disseram os dirigentes. “Seja por questões orçamentários, estruturais, segurança e qualidade de vida daqueles que se propuseram a tocar essa empreitada.”