Regulatório da Cannabis medicinal é o tema que mais atrai o público do setor

O tema é de interesse de todos os envolvidos na cadeia dos produtos, até mesmo os pacientes

Publicada em 17/08/2020

capa
Compartilhe:

Valéria França

Ex-diretor da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), o economista Ivo Bucaresky é hoje consultor na área de inteligência regulatória e economia da saúde. Ele entende de uma das áreas mais complexas da Cannabis medicinal, que envolve as regras para a produção e comercialização dos produtos. Por outro lado, também é o tema que mais desperta interesse do público.

Um exemplo disso aconteceu no início de agosto, quando a palestra de Bucaresky foi a mais acessada do Congresso Digital de Cannabis Medicinal. Por de trás dos cliques, estavam empresários, médicos e até pacientes. Esperava-se que as pessoas ligadas diretamente às indústrias, como os empreendedores, formassem o perfil da platéia virtual. "A minha plateia é sempre muito variada."

Na entrevista a baixo, ele explica o motivo de os pacientes estarem tão preocupados com a regulação, para onde o mercado caminha e o porque de as grandes farmacêuticas ainda estarem de fora do setor da Cannabis Medicinal.

Por que o senhor acha que sua palestra foi a mais acessada? A questão da regulação ainda deixa dúvidas aos empresários?
IB: Não são apenas os empresários que estão com dúvidas. Os pacientes e os médicos também querem entender como funciona a regulação. Os pacientes possuem um papel muito diferente na Cannabis medicinal, porque partiu deles a pressão para que todo esse processo se desencadeasse. Mobilizaram e educaram os médicos. Desde o início, sempre foram muito envolvidos. A maioria ainda tem problemas de acesso ao medicamento, por isso acompanham de perto. O médico também fica muito renitente a prescrever, mas acabam desistindo pela dificuldade que existe.

Médicos querem aprender a prescrever

Que tipo de dificuldade o senhor se refere?
IB: Por exemplo, um médico conhecido queria prescrever a um paciente oncológico. Mas não dava para esperar muito pelo medicamento. Imagine o paciente com náuseas por causa da quimioterapia. Até o medicamento chegar, a quimioterapia já pode ter acabado. As vezes vale mais à pena comprar algo na farmácia da esquina de casa.

Eles querem entender os prazos e se há perspectiva de fato de termos mais Cannabis medicinal no mercado nacional?
IB: Os médicos querem entender o acesso e o custo. Querem saber se terão medicamento disponível se precisarem; para o que podem prescrever; os usos da Cannabis; e até como prescrever. Há ainda o medo do Conselho Federal de Medicina. No momento que existe um registro de medicamento o cenário pode mudar. Há angústia por parte dos médicos.

Acessibilidade

O senhor acredita que os medicamentos ficarão mais acessíveis?
IB: Quando os medicamentos de uso compassivo chegarem às farmácias terão preços menores. Os dois medicamentos que estão hoje à venda com registro são muito concentrados.

Quando o mercado nacional deve começar a ter mais medicamentos registrados?
IB: Não teremos o produto tão rápido como esperávamos no início do ano. Em 2015, a Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária) estava aprendendo o que estava acontecendo. Hoje, a Cannabis tem uma regulação diferente até dos fitoterápicos. Apesar da regulação ser a de fármaco, é uma regulação mais amigável porque criou o produto de Cannabis e prevê adaptações ao longo do tempo. Mesmo assim os processos para tirar o registro são demorados. Tem, por exemplo, o teste de estabilidade. Tirando a Prati-Donaduzzi, que conseguiu o registro do Canabidiol (e março), ninguém tinha o teste de estabilidade pronto. Não percebo ninguém que esteja com tudo pronto para colocar um produto na prateleira. Novos registros devem começar a sair no fim deste ano ou começo de 2021. Mais provavelmente no início de 2021.

Como a Prati conseguiu se adiantar tanto no processo?
IB: A Prati fez algo diferente dos outros. As empresas que estavam trabalhando aqui eram especializadas em Cannabis. A Prati é farmacêutica e tinha decidido, lá atrás, que queria lançar um genérico do Epidiolex. Um movimento contrário da indústria farmacêutica, em geral, que estava esperando para ver o que iria acontecer para então investir. Como estava com o processo adiantado e a papelada encaminhada,  ela se adequou mais rapidamente do que as empresas de Cannabis, que não são farmacêuticas e precisaram entender a regulação.

Grandes laboratórios e as patentes

Tem grandes farmacêuticas entrando no negócio?
IB: Não posso dizer por causa do sigilo. Porém acho que tem várias farmacêuticas nacionais que estão pesquisando para entrar no mercado.

As farmacêuticas multinacionais também vão entrar no mercado de Cannabis?
IB: Não acho que as grandes indústrias internacionais queiram remédios sem patentes. Esta parte de análise é uma outra linha de negócios. Mas acho que não estão investindo em Cannabis medicinal no mundo e não apenas no Brasil.

Mas e o medicamento do búlgaro Raphael Mechoulam que desenvolveu o EMP 301? Ele não abriu um novo caminho para patente? Pelo que entendi ele estabilizou as substâncias da Cannabis e patenteou.
IB: Esse medicamento patenteável será superior ao que já existe? Se não for, voltamos ao que estamos vivendo com a Prati, que desenvolveu um medicamento muito caro. O paciente prefere importar outro mais barato mesmo que não tenha todas as garantias da farmacêutica– o mais barato resolve o problema. Não adianta eu inventar um medicamento para dor de cabeça a R$ 10 se eu posso comprar um medicamento a R$ 1 na farmácia. Outro problema é o órgão regulatório aceitar a patente.

Como assim?
IB: As vezes, as empresas fazem uma pequena mudança no medicamento e a Anvisa não aceita porque não entende como inovação, mas como aperfeiçoamento de algo que já existia. A pergunta é: O que o Mechoulam fez seria aceito pela Anvisa? A questão é mais complexa do que desenvolver uma molécula nova. Fitoterápico de uso tradicional no Brasil não é patenteável, porque é de domínio público.

O senhor pode dar um exemplo?
IB: Sim. Chá de boldo, por exemplo. Não podemos esquecer que Cannabis é uma planta.