Faltam evidências científicas para proibir a cannabis, não para produzir, diz cientista da UFRJ

Para o professor João Menezes, do Instituto de Ciências Biomédicas, a proibição impede que testes de eficácia e de segurança sejam feitos: "criminalizar só deixar o Brasil em posição de atraso"

Publicada em 20/09/2019

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Não há evidências médico-cientificas para a criminalização e a proibição seletiva de drogas, em especial, da maconha. Por outro lado, pesquisas apontam para a recomendação do uso médico da cannabis sativa, no tratamento de diversas doenças, argumentou o médico e professor João Menezes, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista ao blog do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

João Menezes comentou a proposta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de liberar o plantio de cannabis com fins de pesquisa e produção de remédios no Brasil, tema que foi alvo de embate, em julho de 2019, envolvendo governo, Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Em nota, as duas instituições repudiaram a regulação do plantio, alegando que "o uso da cannabis (...) ainda não possui evidências científicas consistentes que demonstrem sua eficácia e segurança aos pacientes" e “coloca em risco esse grupo, além de causar forte impacto na sociedade em sua luta contra o narcotráfico e suas consequências”. A nota cita a Resolução CFM nº 2.113/2014, que proíbe aos médicos “a prescrição da cannabis in natura para uso medicinal, bem como de quaisquer outros derivados que não o canabidiol” – uma das 113 substâncias encontradas na planta.

Conforme declarações veiculadas na imprensa, a Anvisa esclareceu que não precisa do aval do governo ou do Congresso para regulamentar o cultivo de cannabis sativa para fins medicinais e científicos. Após consulta pública sobre o tema, encerrada em agosto de 2019, com 554 contribuições, a agência agora depende da deliberação e decisão final da diretoria colegiada.

Para o professor, faltam evidências médico-cientificas rigorosas não para o uso, mas para a criminalização e a proibição da cannabis. Na proibição, procedimentos importantes de testes de eficácia e de segurança não são feitos, explica. “Os experimentos são prejudicados. Uma vez que é proibida a maconha, temos pouco acesso a ela em quantidade suficiente para estudo. Mas... por que é proibida? Não se sabe”.

Ele lembra que, no Brasil, o uso medicinal da substância é autorizado até os 18 anos de idade. “No entanto, a partir do uso da cannabis, essas crianças sobrevivem e passam dos 18 anos. E, então, não podem mais fazer uso? Não há sentido nisso”.

João Menezes aponta outro entrave resultante da proibição: a qualidade do produto a ser pesquisado, prejudicada pela presença de contaminantes. “É ínfimo o número de artigos que abordam contaminantes na maconha e nenhum trata da possibilidade de influência desses contaminantes no efeito final”, observa o pesquisador, que realizou um levantamento de artigos que tratam do tema. “Há países que encontraram pesticidas na maconha, um contaminante que poderia prejudicar o uso medicinal por uma criança. O Estado tem, portanto, obrigação de oferecer segurança nesse acesso”, pondera.

A Anvisa, segundo o professor, faz “um ótimo trabalho”, mas exagera em relação aos termos da regulamentação, capaz de concentrar o acesso à cannabis nas mãos de poucos: a proibição na produção favorece a importação que beneficia grupos estrangeiros, exemplifica. “E por que importar se podemos plantar localmente e balizar os riscos?”, indaga. Criminalizar o cultivo de maconha no país, destaca o médico, só vem a deixar o Brasil em posição de atraso.

“Em países como Uruguai, há dois tipos de cultivo, um industrial super rigoroso, e o autocultivo, mais flexível. Não há necessidade desse excesso de segurança como se isso fosse a produção de uma bomba atômica”, compara. “A domesticação da cannabis ocorreu há aproximadamente 10 mil anos e acompanha os seres humanos há muito tempo, muito antes da escrita. Seu uso, portanto, é tradicional. Civilizações inteiras fazem uso cultural da maconha”.

Com base em antecedentes históricos, o professor avalia como distante, ainda, a possibilidade da descriminalização da cannabis no Brasil. “Foi assim com a abolição da escravidão, que, no país, ocorreu 50 anos após último país abolir. Como médico, lamento. Fiz um juramento de não causar o mal, e sabemos que a proibição faz mal. Isso afeta a todos”.