Crônica: O desespero do réu

Em sua mais nova coluna, a advogada Cecília Galício mostra como algumas pessoas temem ficar sob a tutela do estado brasileiro e porque isso acontece

Publicada em 24/01/2022

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Coluna de Cecilia Galício

Nós temos uma expressão no escritório, que descreve boa parte do dia a dia da advocacia criminal, que é recheada de injustiças e absurdos que nem sempre são remediados pela nossa atuação, que é o “ter de lidar com o desespero do réu”.  Parece engraçado, mas é a parte mais difícil do nosso trabalho. O desespero do réu pode ser definido pelos diversos sentimentos com os quais qualquer réu tem que se deparar, quando percebe que está, a partir daquele momento, sob a tutela do Estado. E por vezes nos perguntam (por não entenderem que esse é um desespero nosso também), por que é que seria tão assustador, ou melhor, tão desesperador para alguém, saber-se sob a tutela do Estado Brasileiro? 

Em primeiro lugar porque nós vivemos num estado de violências, e podem reparar que, de um modo geral, nem os inocentes se sentem confortáveis perto das polícias e de seus símbolos. Ninguém, sabendo quão corrupto quanto é o sistema, se sentirá confortável sob a guarda de uma das polícias mais violentas do mundo, no caso, a brasileira. 

Ultrapassada a fase policial, estar sob a tutela do Estado aguardando julgamento, no Brasil, país que tem a terceira maior população carcerária per capita no mundo, com uma superlotação do sistema onde o número de pessoas (tem isso, o réu é uma pessoa) presas está 166% acima da capacidade, , e cujo “administrador” deste sistema foi condenado em Cortes Internacionais por violações de direitos humanos, sem dúvida, pode vir a ser desesperador.

Se o réu não souber de tudo isso, ele ainda irá chegar à conclusão de que, depois de preso, ele será julgado por um juiz que seguramente não se importa com esses números (dados os próprios números). Ele sabe que terá que ser, muitas vezes, defendido por um defensor público que responde por um número de réus demasiadamente alto, impactando na qualidade de sua defesa, e que será acusado por uma promotoria que certamente tem sua participação no alto grau de encarceramento.

Bem, e isso é, resumidamente, o desespero do réu: saber-se sob a tutela do Estado. E o nosso, é tentar explicar que ainda há razões para seguir, incorruptamente, com as armas do próprio sistema. O problema é que um réu, mesmo depois de solto, continuará com essas marcas. Não é fácil apagar da memória um desespero deste tamanho quando sabemos que ele continua acontecendo diariamente, ainda que não nos atinja com igual intensidade. É difícil, para todos os envolvidos, lidar com o desespero de tantos réus. São muitos. É preciso, com urgência, reformar a Lei de Drogas no Brasil. E no mundo. 

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

Sobre o autor:

Cecilia Galício é advogada militante pelo fim da Guerra às Drogas, mestre em Direito Internacional Público, integra a diretoria da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – Rede Reforma, é Conselheira Suplente do Conselho Estadual de Política sobre Drogas de São Paulo – CONED/SP pela Acuca, integrante da RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas.